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Meu corpo, minhas regras?

Uma análise da dominação dos corpos femininos em uma perspectiva foucaultiana

Por Anne Caroline Fidelis


INTRODUÇÃO

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. (FOUCAULT, 1997, p. 135).

Michel Foucault (1984) em seu clássico “Vigiar e Punir” dedica um capítulo ao que chamou “corpos dóceis”, sendo estes os corpos submissos e exercitados, fabricados pela disciplina eivada de técnicas minuciosas, pequenas astúcias dotadas de grande poder de difusão.

Na obra referida o autor cita o exemplo dos soldados que eram fabricados a partir do alinho do dito corpo inapto, onde “corrigindo aos poucos as posturas: lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, assenhoreia-se dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos”. (FOUCAULT, 1997, p. 133).

Ainda sobre o processo de docilização, Foucault transcreve uma passagem da ordenação de 20 de março de 1977 da La Milice française acerca da fabricação dos corpos dos recrutas, momento que aduz que os mesmos eram habituados a

manter a cabeça ereta e alta; a se manter direito sem curvar as costas, a fazer avançar o ventre, a salientar o peito, e encolher o dorso; e a fim de que se habituem, essa posição lhe será dada apoiando-os contra um muro, de maneira que os calcanhares, a batata da perna, os ombros e a cintura encostem nele, assim como as costas das mãos, virando os braços para fora, sem afastá-los do corpo [...].[1]

Em uma comparação quase inevitável, impossível não recordar de todo um processo de padronização enfrentado pelos corpos femininos ao longo de suas trajetórias de vida. Nesse contexto, fazendo um paralelo com um texto de um tempo não tão distante, exemplifica-se o processo de domesticação desses corpos com as instruções de “Como andar graciosamente” do extinto Jornal das Moças em 1952:

A elegância de uma mulher é marcada pela sua boa linha, harmonia de toalete e, também, muito especialmente, pelo seu modo de andar. A importância desse fato não deve escapar a nenhuma mulher. Um andar gracioso exige uma facilidade de adaptação ao momento, um estado de espirito diferente, segundo aquele que anda a largas passadas ao ar livre envergando um tailleur esporte, ou uma pessoa que desliza sobre um assoalho encerado envergando um belo vestido de noite. Para ter seus movimentos livres, uma mulher deve ter as pernas ágeis, os tornozelos leves, os pés em perfeito estado. Durante a toalete, você fará bem em esfregar os pés com uma escova, a fim de ativar a circulação do sangue e desembaraçar a pele das células mortas. Notando que a má circulação tem repercussões incomodas nos tornozelos e que o tratamento externo não é eficaz nestes casos, procure logo tomar as providências necessárias. As glândulas precisam de um tratamento especial que somente um médico pode fazer. Esfregar pedra-pomes na pele dos pés é muito recomendável para evitar o engrossamento da epiderme, o qual se produz particularmente nos pés, no lado externo do calcanhar, na altura do contraforte do calçado. A extremidade das unhas deve ter uma forma arredondada, nem muito longa, nem muito curta. São as unhas mal cortadas, mal limadas, que ficam encravadas. As massagens são muito boas, se forem feitas com um creme oleoso. Tome os pés entre o polegar e os quatro dedos da mão e, alternativamente, com uma das mãos, pois a outra deverá massagear o pé, passe os dedos sobre o tornozelo. Massageie igualmente o tornozelo e o calcanhar. (JORNAL DAS MOÇAS, Outubro de 1952).

Tal qual soldados os corpos das mulheres passaram – e passam – por toda uma coação calculada, sendo de fato objetos e alvos de poder que se manipula, modela-se, treina-se, que obedece, responde, torna-se hábil ou cujas formas se multiplicam (FOUCAULT, 1997, p. 134) numa dita busca pela tal feminilidade.

Os recrutas mencionados por Foucault eram disciplinados sob a chancela da busca pelo soldado ideal, aquele admirado e capaz de vencer qualquer obstáculo. As mulheres ocidentais, em especial no século XX e XXI (objeto de nossa análise), tal qual os recrutas, foram e são docilizadas sob a chancela de um idealizado padrão, um ilusório de mulher construído socialmente.

A ligação entre mulher, estética e beleza são um grande marcador desse processo de adestramento, afinal “a bela mulher conquistará um bom homem”, sendo esta a propaganda inconsciente – por vezes consciente – desta civilização ocidental onde o casamento é supervalorizado.

Retomando a perspectiva de Foucault (1987) sobre disciplina, observamos tanto no texto do Jornal das moças sobre o andar gracioso, quanto nas capas de revista acima (Figura 1 e Figura 2), uma de 1959 e outra de 2011, semelhantes expressões de coação sobre os corpos. Por vezes com um você “deve ter pernas ágeis”, ser “magra e sexy”, ter “bumbum de gata carioca”, ter “o cabelo dos seus sonhos”, por vez acompanhados com imagens tão ordenadoras quanto as palavras, pois expressam um ideal quase inatingível, mas que sevem de imperativos sobre os corpos femininos, afinal, “elas são tão felizes...”. Assim

As estratégias de comunicação em geral, vinculadas ao mercado e à necessidade de vender produtos, geraram uma relação muito direta entre consumo, prazer e poder. E a mulher aparece aí quase que como o próprio produto de consumo. É assim que se vende cerveja, é assim que se vende carro, é assim que se vende qualquer coisa a partir da figura feminina, especialmente a partir do corpo da mulher (entrevista da deputada federal Maria do Rosário do PT do Rio Grande do Sul ao site Carta Maior, em 20/07/2004).

Não fosse o bastante a visível homogeneização dos corpos – magra e sexy com um bumbum de gata carioca e cabelo dos sonhos –, também são fortes as demais expressões dessa notória docilização. Ao se estabelecer padrões se observa a forma como se constrói o corpo feminino por meio da coerção, pois a mensagem velada – as vezes descarada – é ao mesmo tempo singela: a mulher que não se aproxima deste publicado padrão não será elegante, bonita e desejada. Não será feliz.

O que se observa a partir dos textos e imagens acima são mudanças de padrão, mas nunca a inexistência de padrão, seja na década de 50, seja na atualidade. Além disso, em todos os periódicos se denota uma vertiginosa cobrança sobre as mulheres, de modo que a exigência pela beleza e pela capacidade de despertar desejo são evidentes rituais de domesticação destes corpos.

Além do notório apelo visual, um outro aspecto talvez mais velado deste adestramento, é o próprio teor das matérias dessas revistas que por hora estão sendo apenas arquétipos de todo um processo da civilização ocidental, mas que expressam bem a disciplina impostas aos corpos femininos.

A título de exemplo se observa o teor das matérias acima. No texto do Jornal das Moças (1959) se fala da importância do andar gracioso; na Figura 1 as matérias da mesma revista são “A arte da culinária com salgados” e “Lições de tricô à máquina”; na Figura 2 a revista Corpo à Corpo (2011) os títulos são “Cabelo lindo no verão”, “Magra e sexy”, “Nota 10 no teste da areia”, etc.; na Figura 3 a revista Nova (2011) são “Supere a ex dele na cama”, “O guia definitivo para ter o cabelo dos seus sonhos”, “Magra pra sempre”, “A crise dos 25”, etc.

Observa-se que em regra os temas das revistas femininas rodeiam basicamente em beleza, estética, jovialidade e formas de agradar/segurar os homens. Essa notória repetição além de denotar uma superficialidade de temas, diz a mulher da sua “impossibilidade” de participação nos processos econômico-sócio-políticos, reduzindo-as a meras mantenedoras do lar e de suas belezas padronizadas, afinal, “lugar de mulher não é na rua e nem na política”.

Um grande reflexo dessa mensagem velada sobre o que seria o papel da mulher na sociedade, incutido pela mídia de forma geral, é a baixa representatividade política feminina que, no Parlamento brasileiro, não alcança sequer 10%, de modo que a criação de políticas públicas com vistas a garantir uma maior participação política das mulheres ainda é uma tarefa extremamente árdua.[2]

Neste cenário o que se percebe é que, tal qual enunciado por Foucault (1984), para o sucesso do poder disciplinar são utilizados instrumentos simples, de modo que a fabricação desses indivíduos dóceis passe a de fato tomá-los como objetos e meios de exercício de poder.

Não há como negar a genialidade destes pincelados recursos de adestramento, pois se revestem de tamanha naturalidade que sequer são notadas pelas coletividades. É nesta brandura que reside a manutenção da dominação que, segundo Foucault, se utiliza destes três mecanismos singelos: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame. (FOUCAULT, 1997, p. 167).

Mais detidamente sobre estes mecanismos discorreremos abaixo.


A CRÍTICA FEMINISTA SOBRE A TEORIA DE FOUCAULTIANA

A dominação sobre os corpos femininos é, essencialmente, um reflexo da visão patriarcal que estende as diferenças biológicas a uma distinção social hierarquizante.

A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, podem assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão do trabalho. (BOURDIEU, 2007, p. 20).

Não por acaso a frente dominante incute conceitos como se naturais fossem, atribuindo caraterísticas aos corpos como se nascessem com eles. Trata-se da ideia de papeis naturalmente escritos para cada sexo, onde a mulher é tida como inatamente submissa e o homem naturalmente dominador.

A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho e de reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos esquemas imanentes a todos os habitus: moldados por tais condições, (...) elas funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentes e históricos. (Bourdieu, 2007, p. 45)

Foucault (1987), apesar da importante discussão a respeito das questões do poder e do saber, não se aprofundou propriamente nas questões de gênero na produção das subjetividades que são, sempre, marcadas pelo gênero (Scott, 1995). Essa é a crítica-mor do movimento feminista à sua obra.

Esta ausência de abordagem de Foucault sobre o poder dominante –masculino e vinculado a ideologia patriarcal - é uma das regiões mais problemáticas de sua teoria segundo a teoria feminista.

Teresa de Lauretis, a despeito a imprecisão de Foucault sobre este prisma aduz:

Negar gênero, em primeiro lugar, é negar as relações sociais de gênero que constituem e validam a opressão sexual das mulheres; em segundo, negar gênero é manter uma ideologia que serve aos interesses do sujeito masculino (De Lauretis, 1987, p. 15).

Válido mencionar que Foucault de certo modo reconhecia a dominação de algumas minorias, entre elas as mulheres, ao passo em que compreendia ser necessário que tais minorias lutassem por sua liberdade em algum momento. Porém, era contrário às políticas identitárias dos movimentos libertários a partir da proposição de que "as relações que devemos manter conosco mesmos não devam ser relações de identidade, mas sim relações de diferenciação, de criação e de inovação" (FOUCAULT, 1999, p. 421).

Porém, em que pese a criticada imprecisão, não há como negar a importância e profundidade do autor ao abordar a sua teoria sobre dominação, de modo que mesmo sem uma discussão precisa, é plenamente possível a utilização de sua teoria quando do estudo da dominação patriarcal sobre os corpos femininos.


OS RECURSOS DE ADESTRAMENTO

Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode fiar-se em seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente. (FOUCAULT, 1997, p. 167).

Conforme já tracejado, o êxito do poder disciplinar se vale de instrumentos simples de adestramento os quais são objetos de uma tipologia apresentada por Foucault.

O primeiro mecanismo segundo o francês é o olhar hierárquico que, por sua vez, opera-se na vigilância hierarquizada, contínua e funcional, que se abriga no jogo do olhar, “observatórios da multiplicidade humana. Pequenas técnicas da vigilância múltiplas e entrecruzadas, dos olhares que devem ver sem ser vistos”.

Neste contexto Foucault (1987) destaca o papel da arquitetura nesta vigilância, notabilizando ser essencial neste caso as denominadas instituições sociais, entre elas: fabricas, escolas, hospitais, prisão, etc. Tratando-se de lugares que mesclam poder e saber contribuindo para o exercício de um poder adestrador e controlador de comportamentos.

Segundo Lechte (2002, p. 133), a forma como este poder moderno é exercido é decorrente das “mudanças engendradas pela emergência de instituições que lidam com a formação de conhecimento sobre os indivíduos. O conhecimento é, portanto, ligado ao poder”.

Trata-se de um poder que engendra o domínio sobre o corpo sem usar a violência, tendo em vista o objetivo de adestrar, não imediatamente de ferir.

Em tempos de tecnologia, no entanto, tais mecanismos sequer prescindem de presença física entre vigilantes e vigiados, sendo hoje os meios digitais, por exemplo, fortes instrumentos de vigilância e adestramento e que podem se valer, inclusive, de estruturas virtuais.

Para além da vigilância hierárquica, outro instrumento tipificado pelo escritor francês fora a sanção normalizadora que, em suma, consiste em um pequeno mecanismo penal onde são utilizadas punições que vão desde castigo físico leve a privações ligeiras, bem como pequenas humilhações (FOUCAULT, 1997, p. 175).

Tal castigo acaba por ter um fim de reduzir o que Foucault (1987) denominou de desvio, tendo um poder essencialmente corretivo, ao passo em que a punição não passa de um elemento de um sistema duplo de gratificação-sanção. O autor assim arremata sobre o tema:

Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão. A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza. humilhações (FOUCAULT, 1997, p. 180).

Por derradeiro, nesta tipologia dos instrumentos de adestramento, Foucault discorre a respeito do exame, sendo este extremamente ritualizado já que se trata de uma vigilância que possibilita qualificar, classificar e punir, onde o indivíduo se torna um objeto descritível, onde cada um é um caso para conhecimento e tomada para o poder, de modo que

O exame como fixação ao mesmo tempo ritual e “científica” das diferenças individuais, como oposição de cada um à sua própria singularidade (em oposição à cerimônia onde se manifestam os status, os nascimentos, os privilégios, as funções, com todo o brilho de suas marcas) indica bem a aparição de uma nova modalidade de poder em que cada um recebe como status sua própria individualidade, e onde está estatutariamente ligado aos traços, às medidas, as desvios, às “notas” que o caracterizam e fazem dele, de qualquer modo, um “caso”. (FOUCAULT, 1997, p. 187).

A questão é: de que modo esses recursos se articulam na domesticação dos corpos femininos?

É fato que além análise dos instrumentos de adestramento, importante se avaliar a atualização destes na contemporaneidade, vez que os novos meios de comunicação criaram novos muros e novas experiências de vigilância.

Com vistas a melhor elucidar esta questão, válido mencionar casos práticos em que se evidenciou a utilização dos instrumentos em questão: vigilância, punição e exame.

No ano de 2015, por exemplo, foram Inúmeros os casos de mulheres que tiveram suas fotos íntimas “vazadas” na internet ou tiveram condutas consideradas desviantes publicadas também por meios eletrônicos.

Formaram-se verdadeiros tribunais virtuais, onde estas mulheres tiveram suas vidas expostas sob olhares curiosos e hierarquizantes, somados a fortes penas atribuídas por esses juízes difusos que cuidaram rapidamente de lhes proceder o exame.

A intensidade dessas penas por vezes acaba se convertendo em morte, a exemplo de casos em que mulheres se matam por não suportarem o “constrangimento” de sua exposição:

Após escrever e postar esta frase no Twitter a estudante Giana Laura Fabi, de 16 anos, se matou. Segundo sua família, a adolescente de Veranópolis se enforcou em casa na quinta-feira passada, com um cordão de seda. Ainda segundo a família, o suicídio da garota teria sido motivado pelo vazamento de uma foto sua mostrando os seios. Nesta quarta-feira o delegado da cidade gaúcha a 176 km de Porto Alegre ouviu um rapaz de 17 anos que confirmou ter dado um printscreen (comando pelo qual vc "fotografa" a tela de seu computador) e enviado a foto de Giana para alguns amigos. Daí, a imagem correu a rede, causando o "estorvo" a que a menina se referia, e que ela decidiu resolver dando fim à própria vida. Quatro dias antes, Julia Rebeca, estudante piauiense de 17 anos, havia se matado por motivo semelhante. Também se enforcou, mas com um fio elétrico. Não suportou o que sofreu após um vídeo em que aparecia fazendo sexo vazar na internet. E igualmente despediu-se pelo Twitter: "É daqui a pouco que tudo acaba. Eu te amo. Desculpe n ser a filha perfeita, mas eu tentei... desculpa desculpa eu te amo muito. Eu to com medo mas acho que é tchau pra sempre" Outros casos parecidos não terminaram em morte, mas levaram à destruição da vida da pessoa, como aconteceu no mês passado com Fran, a garota de Goiânia que também teve um vídeo íntimo vazado na internet.[4]

Observa-se, dessa breve reflexão a respeito dos instrumentos de domesticação, que Foucault nos convida a penetrar a rede constitutiva das relações sociais que individualizam em níveis e patamares a fim detectar “como funcionam as coisas no nível do processo de sujeição ou dos processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos, etc.”[5]

A obra de Foucault, deste modo, alinha-se à análise feminista – como se discorrerá adiante – no compasso em que pretende desvelar os discursos de verdade sobre o humano e seu poder, pois, segundo este autor, “somos julgados, condenados, classificados e obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função de discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder”[6]

Nesse contexto, envoltos nessa trama de poder, os corpos femininos são ao longo de sua existência e pós-existência, domesticados, sujeitados, dominados, julgados e penalizados de diversas formas.


A ARTE DA INDISCIPLINA

A disciplina é uma anatomia política dos detalhes (FOUCAULT, 1997, p. 137).

Um padrão é eleito. O corpo subserviente é desenhado e apresentado de modelo para que todas as demais mulheres o sigam. O cabelo, o peso, o comportamento e a vida ideal pregadas no termômetro da normalidade disposto a coagir qualquer ato de insurgência.

Neste contexto vemos diariamente a repetição da ideia de que a mulher deve focar na beleza, em um funcionamento ideológico que vincula o “mundo feminino” à perfeição física e amordaça a possibilidade de ligação deste universo com outros temas.

Porém, em que pese a existência de punições, sociais, físicas ou psicológicas, exsurgem as mulheres “desviantes” com o objetivo de contestar padrões e clamar por outros papeis para além dos impostos pela sociedade patriarcal.

No livro “O segundo sexo” (1949) de Simone de Beauvoir (1986), esta apresenta a questão: o que é uma mulher?[7] Nessa reflexão sobre o referido tema, a grande “indisciplina” já surgiu a partir da perspectiva de um conceito a partir do sujeito-em-si, não mais simplesmente de um reflexo invertido ou a partir de uma construção do olhar masculino, de modo que O feminismo, enquanto um movimento político transformador, insere-se em um campo de poder/saber na medida em que interroga e desconstrói a naturalização dos corpos em papéis e práticas sociais, e ao mesmo tempo produz e critica seus próprios discursos em desdobramentos que contemplam as variáveis etnias, classe, raça, e o próprio sexo biológico na constituição do sujeito “mulher”. O sujeito dos feminismos é assim múltiplo e se desloca de um grupo definido e do indivíduo singular, pois produz-se em um movimento complexo e dinâmico, na análise das engrenagens de constituição do corpo/sujeito/sexo, na experiência das práticas sociais generizadas - enquanto mulher- e na crítica ao quadro epistemológico no qual se insere seu próprio discurso.[8]

Na concepção Foucaultiana, portanto, os feminismos são parte da denominada insurreição dos “saberes dominados, da ‘imensa e proliferante criticabilidade das coisas, das instituições, das práticas, dos discursos”[9]. Para Foucault, “o caráter essencialmente local da crítica indica na realidade algo que seria uma espécie de produção teórica autônoma, não centralizada, isto é, que não tem necessidade, para estabelecer sua validade, da concordância de um sistema comum.”[10]

A lógica feminista, portanto, questiona estes papeis naturalizados para revelar as verdadeiras engrenagens de poder que regem esses papeis idealizados, esmiunçando a anatomia política dos detalhes e se perguntando: Afinal, para quem interessa esse contexto? Por que as coisas são como são?

Assim, passa-se a descobrir que os discursos sobre o corpo, sexualidade e a divisão hierarquizada dos seres humanos em mulheres e homens são, de fato, efeito e instrumento de poder instituinte.[11]

Desse modo a mulher que questiona e que se insurge contra os padrões instituídos passa a ser perseguida, julgada e penalizada, tal qual descrito por Foucault. Porém, é fato que o trabalho do francês não se debruça detidamente sobre as questões do feminino, apenas aponta para as estratégias sociais que acabam por nos fazer observar que o corpo da mulher é um lugar de exercício do poder.

Revoltar-se contra este poder que dociliza é, sem dúvida, um ato considerado de indisciplina pelo poder dominante. Não à toa os movimentos feministas foram e continuam sendo perseguidos.

Porém, apesar dos encalços, é fato que já ocorreram conquistas a partir deste movimento de desnaturalização sobre o que é ser homem e mulher na sociedade, de modo que somente a crescente reflexão sobre os mecanismos de poder contribuem para a busca pela erradicação das desigualdades de gênero.


DOMINAÇÃO E VIOLÊNCIA

Como dito inicialmente, a dominação sobre os corpos femininos se expressa de diversas maneiras. Seja estampando corpos padronizados em veículos de informação impondo um ideal inalcançável, seja desqualificando a mulher “desviante” publicamente.

É fato, entretanto, que a violência contra mulher é certamente a pior expressão de todo este esquema de dominação patriarcal sobre os corpos.

Não por acaso as mulheres são grandes vítimas de crimes de ódio, pelo simples fato de serem mulheres. No Brasil, por exemplo, fora promulgada a Lei 13.104 de 9 de março de 2015 com o fim específico de criminalizar este ato em razão de sua recorrência.

Nesse contexto de dominação masculina é fato que a mulher que se contrapõe, mesmo que timidamente, também será vítima-mor desse cenário de violência, simbólica ou escancarada.

E é neste panorama que as mulheres são confrontadas ao longo da vida com diversos contextos de vitimização que, de forma notória, são puros reflexos desse poder que se sobrepõe aos seus corpos.

A severidade da violência experienciada pelas mulheres pode ser aferida de várias formas. Em primeiro lugar, a precocidade no início do processo de vitimização. Para cerca de 30 % das vítimas, o primeiro episódio de violência sexual, física ou psicológica registou-se antes de completarem 18 anos, percentagem que ultrapassa a metade das vítimas, se se considerar uma primeira vitimização antes dos 25 anos de idade (Gráfico 2). Em segundo lugar, as vítimas de violência sexual são objeto de atos de natureza física, sexual e/ou psicológica: à data do estudo, 23,2 % das inquiridas tinha sido vítima de cinco ou mais atos de violência. Somente 30,4 % das mulheres mencionou um único ato de violência. Em terceiro lugar, a vitimização declarada pelas vítimas de violência sexual indicia uma severidade que coloca em risco a vida da mulher: 17 % das vítimas refere casos de violência que de forma explícita ou implícita colocam a sua vida em risco como as “ameaças com arma de fogo ou branca”, “ameaças e chantagens do tipo «mato-te»”, “apertarem-lhe o pescoço”, “empurrões pela escada abaixo/contra objetos”, “sovas”, “bater com a cabeça contra a parede/chão” e “atirarem-lhe objetos”; entre estas vítimas, mais de metade referiu mais do que um ato deste tipo, o que representa um cenário de vitimização severo. Importa pois conhecer o início do processo de vitimização e discernir o modo como diferentes tipos e contextos de vitimização se intercalam e sucedem no curso de vida das mulheres.[12]

Sendo assim, claras as punições enfrentadas pelos corpos femininos ao longo da vida que, numa perspectiva foucaultiana, denotam formas de controle e dominação do poder dominante e patriarcal.


CONCLUSÃO

Tão clara como a água é a subalternidade da representação feminina na sociedade, sendo um evidente exemplo de todos os mecanismos de dominação descritos na obra “Vigiar e Punir” (1997).

Nesse sentido, apesar da ausência da específica problematização de gênero e da contestação direta às relações desiguais, hierárquicas e masculinas, é inquestionável a contribuição de Foucault no que se refere as reflexões sobre poder e os discursos normalizantes dos dispositivos de dominação.

De todo modo, fácil traçar este paralelo em relação a situação das mulheres em sociedade e a obra de Foucault, vez que são de fato encarceradas a prisões domésticas e de seus próprios corpos, disciplinadas do dia que nascem até o último suspiro de suas vidas.

Sob o olhar vigilante e hierarquizante, mulheres são vítimas das ditas sanções normalizadoras que, comumente, se convertem em violência.

Assim, para além das imprecisões, a obra de Foucault é sem dúvida um excelente instrumento de análise e conhecimento para uma efetiva transformação da realidade.



PUBLICADO EM:


REFERÊNCIAS


BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2 ed. São Paulo, vol 2.: Difusão Européia de livors, 1967.


BOURDIEU, P. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kühner. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.


DE LAURENTIS, T. (1987). Technologies of gender. New York: Bloomington.


FOUCAULT, M. (1999). Estética, ética e hermenêutica (Obras Essenciales Vol. 3) (A. Gabilondo, Trad.). Buenos Aires, Argentina: Paidós.


FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 5. ed. Petropólis: Vozes, 1997.


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FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité I, la volonté de savoir, Paris, Gallimard, 1976, pg.133


LECHTE, John. Pensamento pós-estruturalista. In: ______. Cinquenta pensadores contemporâneos essenciais: do estruturalismo à pós-modernidade. Tradução: Fábio Fernandes. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. p. 129-134.


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PATRÍCIO, Joana Aguiar. Violência contra as mulheres: processos e contextos de vitimização. Fórum Sociológico. Disponível em <http://sociologico.revues.org/902 ; DOI : 10.4000/sociologico.902>. Acessado em 25/09/2016.


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SCOTT, J. (1995). Gênero: Uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade: Gênero e Educação, 20 (2), 71-99.


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ROSÁRIO, Maria do. “Exploração da mulher na mídia estimula violência sexual” – Agência Carta Maior, São Paulo. Disponível em <http://pedrokemp.com.br/geral/cpi-exploracao-pela-midia-estimula-violencia-sexual/797/22/07/2004/> Acessado em 25/09/2016.


Notas

[1] MONTGOMMERY, L. de. La Milice française. Edição de 1636, p. 6s.

[2] PELLEGRINI, Marcelo. Sub-representação feminina no Congresso afeta direitos sociais da mulher. Carta Capital, São Paulo. Disponível em <http://www.cartacapital.com.br/politica/sub-representacao-feminina-no-congresso-afeta-direitos-sociais-da-mulher-4112.html > Acessado em 25/09/2016.

[3] ‘Foi fazer a unha, né Fabíola?' é o novo meme das redes sociais. O Globo. Rio de Janeiro, 2015. <http://blogs.oglobo.globo.com/nas-redes/post/foi-fazer-unha-ne-fabiola-e-o-novo-meme-das-redes-sociais.html > Acessado em 25/09/2016.

[4] Os suicídios de garotas que tiveram suas fotos íntimas vazadas na internet. Carta Capital. Disponível em <https://jornalggn.com.br/noticia/os-suicidios-de-garotas-que-tiveram-suas-fotos-intimas-vazadas-na-internet> Acessado em 25/09/2016.


[5] FOUCAULT. Microfísica do poder, Rio de Janeiro, Ed.Graal, 1979. pg.169

[6] Michel FOUCAULT. Vigiar e punir, op.cit. pg.180

[7] BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo, 2 vol., São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966.

[8] RANGEL, Lívia. Quem tem medo de Foucault? Feminismo, Corpo e Sexualidade. Arquivado na UFES. Disponível em <http://www.ebah.com.br/content/ABAAAA6yQAJ/quem-tem-medo-foucault-feminismo-corpo-sexualidade > Acessado em 25/09/2016.

[9] Michel FOUCAULT. Microfísica do poder, Rio de Janeiro, Ed.Graal, 1979. pg.169

[10] Idem, ibid. pg 169

[11] Michel FOUCAULT. Histoire de la sexualité I, la volonté de savoir, Paris, Gallimard, 1976, pg.133

[12] Joana Aguiar Patrício, « Violência contra as mulheres: processos e contextos de vitimização », Forum Sociológico [Online], 25 | 2014, posto online no dia 10 Novembro 2014, consultado 30 de setembro de 2016. URL : http://sociologico.revues.org/902 ; DOI : 10.4000/sociologico.902

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